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FICÇÃO: Sete maneiras de olhar para uma retroescavadeira

May 24, 2023May 24, 2023

Xavier Blackwell-Lipkind 21h22, 24 de fevereiro de 2022

Repórter da equipe

Amélia Dilworth

Foi noite a tarde toda.

Estava nevando

E ia nevar.

O melro sentou-se

Nos galhos do cedro.

—Wallace Stevens, “Treze maneiras de olhar para um melro”

Eu (lembrando)

Terça-feira é um daqueles dias de neve em que os postes de luz se acendem às quatro e lançam seu brilho cinza sobre a estrada pintada. Sempre se surpreende com a quietude das coisas frias, com o zumbido silencioso que corre tremendo pelas colinas e entre as casas. O único som é o zumbido distante de um soprador de neve. Um canto mecânico de baleia.

Mamãe diz a ele que o inverno é uma época para pensar, porque não há mais nada a fazer. Ele acha isso estúpido. Quando não há nada para fazer, pensa ele, você se senta à janela e olha para o branco gelado até que algo se transforma em nada. O inverno é uma época para não pensar, para esquecer. O verão, quando o papel de parede se derrete em pequenas faixas úmidas de cor, exige reflexão, pensamento frenético, pensamento maníaco e cheio de suor: sobre o passado, sobre o futuro, sobre as formas nas nuvens, sobre a cor do trovão. Sobre se os mosquitos se apaixonam. Mas não no inverno. O inverno é uma época de esquecimento.

Ele fica no final da rua ao lado da retroescavadeira. Ninguém sabe ao certo por que está aqui. A construção acontece, mas ninguém vê. Como mágica. Existe uma hora todos os dias em que as pessoas ficam dentro de casa, sem olhar, sem ouvir, compelidas por alguma estranha força invisível? E os trabalhadores entram correndo, cavam o asfalto e despejam o concreto, depois fogem no momento em que a vizinhança acorda e retorna ao ritmo oscilante da vida suburbana, passando manteiga no pão, cortando a grama e adiando o divórcio? A neve está manchada com as lembranças marrons de um dia de trabalho invisível.

Não há neve sem lama. Ele se pega repetindo as quatro palavras silenciosamente, cantando-as para si mesmo. Não há neve sem lama. Parece noite, mas lá está o sol, quase invisível sob as nuvens, um orbe difuso de cor branco-amarelada. Ao soprador de neve juntou-se agora outro, e o dueto cheira a gás e cera de vela. O cheiro de uma iluminação de Hanukkah que deu errado.

O inverno é uma época para esquecer, mas ele é péssimo em esquecer. Ele se lembra de tudo simultaneamente. Interferência de rádio, canais se fundindo. Como quando o fantasma de uma polca aparece sorrateiramente por causa de uma reportagem da NPR sobre Benghazi. Uma estática frenética de lembranças: comendo massa de biscoito com um meio amigo, acordando tarde no sábado em uma massa de cobertores se contorcendo, sentindo o tapa nas costas de uma onda do mar, lendo um romance romeno de 400 páginas e não entendendo nada, sentado uma cadeira com a mamãe e vendo o céu passar.

Às vezes ele se ressente da simultaneidade avassaladora e causadora de dor de cabeça de tudo isso. Às vezes ele deseja que as memórias esperem a sua vez. Houve um tempo em que um gato o arranhou, quando ele beijou um travesseiro, quando uma torradeira pegou fogo, quando ele chorou em um passeio em um parque de diversões. Mas quando? O que veio primeiro? Qual veio por último? Seu cérebro lhe promete que essas são perguntas sem sentido. E então aqui está ele, equilibrando-se no meio-fio, lembrando e lembrando até que todo o seu passado começa a parecer como ontem de manhã, distante, mas estranhamente próximo.

Talvez esta noite um homem sem rosto venha e leve a retroescavadeira embora. E amanhã de manhã, quando a lua se esconder atrás da neve, tudo o que restará serão as marcas grossas da retroescavadeira, apontando para Park Road e curvando-se à direita, à direita, até desaparecerem sob as impressões digitais borradas de um milhão de carros.